Camelôs: um velho problema que volta a crescer

Crise faz número de ambulantes irregulares se multiplicar, trazendo concorrência desleal para os comerciantes legalizados

O aumento ou a diminuição do número de camelôs vem obedecendo a um padrão quase constante nas últimas décadas. As crises econômicas – como a atual – costumam fazer crescer exponencialmente o total de ambulantes. As políticas de repressão da prefeitura, pouco sistemáticas e sem continuidade, às vezes contribuem para controlá-los – a última grande rodada de regularizações e repressão ocorreu ainda no governo do ex-prefeito Cesar Maia. E, assim, os comerciantes legalmente estabelecidos vão vendo seus investimentos e seus negócios prejudicados pela concorrência desleal com aqueles que não pagam impostos, ocupam o espaço público muitas vezes de modo predatório, chegam a vender mercadorias roubadas ou piratas e, em última análise, prejudicam a economia formal, contribuindo, assim, para o aumento do desemprego.

Os últimos meses foram marcados por uma nova expansão no número de camelôs pelo bairro. A lei 1.876 de 1992, que regula o comércio de rua, autoriza a presença deles no Rio de Janeiro. Mas não em todos os casos. Oficialmente, são aptos para atuar como ambulantes os deficientes físicos, as pessoas acima de 45 anos, os desempregados por tempo ininterrupto superior a um ano e os egressos do sistema penitenciário com a condição de não regressão ao crime. Mas não é o que se vê. Ao redor da rodoviária. No calçadão. Junto às estações de trem. Em importantes eixos de circulação de pessoas. Em toda parte, é notável o crescimento do comércio irregular, com consequente aumento da poluição sonora e até mesmo da sujeira nas ruas.

‘O EMPRESÁRIO EXIGE TER SEUS DIREITOS RESPEITADOS’

Um comerciante dono de uma loja de roupas no Calçadão, e que pediu para não ser identificado por temer represálias dos camelôs, critica o crescimento desse tipo de atividade na região. Para ele, a atuação dos ambulantes caracteriza concorrência desleal e nociva para o comércio legal, uma vez que os empresários pagam por pontos comerciais extremamente caros, aluguéis e impostos. “Temos que acabar com esse discurso do ‘politicamente correto’ que diz que os ambulantes só querem trabalhar. Na verdade, o empresário também quer trabalhar, mas paga seus impostos e exige ter seus direitos respeitados e a ordem urbana estabelecida”, afirma.

O empresário diz ainda que o comércio irregular como alternativa da crise é apenas mais um agravante da situação econômica: “Concorrência do comércio ambulante leva os empresários a venderem menos e, consequentemente, a ter de demitir mais.”

Lojistas que enfrentam essa concorrência desleal pedem à prefeitura que descruze os braços e volte a fiscalizar e regularizar o serviço de rua. José Augusto Monami, que já foi administrador regional de Campo Grande e hoje é dono da rede de lojas de cosméticos Monami, é uma dessas vozes. “O problema não é só o camelô, porque a própria lei autoriza, mas sim a desordem pública que vivemos no Calçadão. A guarda municipal deve ser usada para organizar. Não tem ordem urbana na cidade de um modo geral… Nós, empresários, temos que nos unir. O Centro de Campo Grande está abandonado pelo poder público”, afirma o empresário.

Num levantamento feito pela SUCESSO com 70 moradores de Campo Grande, o óbvio foi constatado: a população pede urgentemente a regularização do comércio de rua. Se 80% dos entrevistados disseram não se incomodar com a simples existência dos camelôs, quase metade (48,6%) exigem que a prefeitura combata os abusos e integre essas pessoas à economia formal, com o pagamento de impostos e o oferecimento de produtos de origem conhecida e fiscalizada.

PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO TEM FALHAS

Para tentar se regularizar e, assim, pagar impostos e deixar a informalidade, o camelô deve se submeter a um número específico de vagas por área. De acordo com a Secretaria de Ordem Pública, em todo o Rio de Janeiro há 18.400 (na XVIII R.A., que engloba Campo Grande, Santíssimo, Senador Vasconcelos, Cosmos e Inhoaíba, são 800). Segundo especialistas, é a incapacidade do poder público de agilizar os processos de legalização e as duras exigências que provocam a proliferação de camelôs pela cidade.

O processo é penoso e, muitas vezes, sem resultados positivos. Prova disso é que, das 800 vagas disponíveis, apenas 369 estão ocupadas, segundo reconhece a própria prefeitura. Apesar do número baixo de regulamentados, não é difícil calcular às centenas em um simples passeio pela Grande Campo Grande: em lugares não recomendados, comprometendo não só o comércio regular, mas também atrapalhando a ocupação dos transeuntes das calçadas já de difícil mobilidade no bairro.

É o caso de Alexandre Silva, de 44 anos. Vendendo suco natural e empadinhas no Calçadão, já vive como camelô há 10 anos. Neste período, diz ter tentado inúmeras vezes regularizar sua situação, mas, segundo ele, “a secretaria dá várias desculpas” e não consegue.

O problema é que, com a “normalização” da presença dos camelôs – e de suas táticas que não respeitam as regras do “jogo” –, o comércio em geral acaba se tornando uma atividade mais caótica e desorganizada. É que, ao ocupar as calçadas em frente às lojas, muitas vezes escondendo as fachadas (como é notável no calçadão e na rodoviária, onde a Leader Magazine, por exemplo, foi “engolida” pelas barracas dispostas na calçada), os ambulantes obrigam os lojistas a fazer o mesmo.

Para tentar competir de igual para igual com o comércio irregular que ocupa grande parte da calçada e compromete a visão dos pedestres de sua loja, Fábio Luiz, varejista do Passeio Shopping há três anos, é um dos que fazem uso de táticas de “de camelô” para não perder as vendas. “Aumentou bastante a presença de camelôs com a crise! Por volta das 17h ou 18h aumenta mais ainda. A organização e a fiscalização são péssimas. Acho que até os camelôs legalizados não conseguem usar o espaço, tamanha a bagunça. Colocamos produtos na calçada, como eles fazem, para marcar território e tentar atrair o consumidor em meio a essa guerra”, conta Fábio.

DO DESEMPREGO À INFORMALIDADE

Sentado em frente a uma agência do Banco do Brasil na Avenida Cesário de Melo, Joaquim Ferreira é camelô há pouco tempo. Ele cuida do seu pequeno e instável espaço onde vende biscoito, bolo, café e outros itens. Com 54 anos, vive a realidade de muitos dos comerciantes irregulares avistados ao longo das ruas do bairro: desempregado em fevereiro deste ano, quando trabalhava na construção civil, e com sequelas de hanseníase, começou a sua saga como comerciante em meados de outubro. “Meu medo é só esse: o cara (guarda) chegar aqui e botar isso tudo no caminhão e eu não saber o que fazer. Já vi eles fazendo isso com os outros, mas não comigo.”

O que diferencia Joaquim de muitos outros que atuam em Campo Grande e no Rio como um todo é que, ao vender coisas feitas em casa, não participa das redes de exploração de produtos que entram ilegalmente no país, por meio de rotas que saem da China e passam pelo Paraguai. Em outros casos, camelôs vendem produtos oriundos de caminhões tombados em vias como a Avenida Brasil e saqueados. Ou, como cogita um grande especialista em planejamento urbano carioca, Humberto Kzure-Cerquera,  doutor em Urbanismo, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e coordenador do Plano de Estruturação Urbanística (PEU) da região de Campo Grande, há indícios de que a própria indústria contribua para o fenômeno dos camelôs: “É, no mínimo, estranho que produtos de ponta de estoque das indústrias vão parar nas barracas dos camelôs ao mesmo tempo em que estão à venda na loja em frente por preços mais altos.”

O QUE PENSAM OS MORADORES?

No levantamento da SUCESSO, os entrevistados citam a ocupação irregular de calçadas como um ponto negativo do comércio ambulante. “Eles precisam ter um lugar reservado, senão atrapalham a passagem. Não acho legal”, afirma Flávia Lourenço, dona de casa de 52 anos.

Segundo Marco Antônio Ferreira de Souza, professor da área de Estratégia, Mercado e Operações da UFRRJ, a população está cansada da ocupação ilegal do espaço público e pede melhores serviços. “O poder público precisa estimular a apropriação diversa do espaço urbano pelas pessoas, para que elas não fiquem presas à existência de poucos e pequenos locais onde tudo se concentra. Quando isso acontece, os comerciantes informais vão, logicamente, ocupar os demais espaços”, discorre.

Procurada para falar sobre o problema, a Secretaria de Ordem Pública se limitou a afirmar que, com apoio da Guarda Municipal, “atua diariamente em todas as regiões da cidade para coibir o comércio ambulante irregular e fiscalizar o comércio ambulante legalizado.” A secretaria não respondeu as perguntas sobre as falhas visíveis no controle dos camelôs.

Foto: Nathalia Cavalcante

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